Coronavírus

De volta à vida: uma entrevista com a oficiala de justiça Giovanna Pereira que vivenciou e venceu a COVID-19

quinta-feira, 08/04/2021 09:34

Reprodução: SINDIOFICIAIS-ES

Por Magno Lovatti

A entrevista a seguir, apesar de não pertencer ao gênero literário, tem a finalidade de encerrar uma série de crônicas escritas para a Coluna Retrato Oficial que foram publicadas neste site com o objetivo de explorar o universo de atuação profissional dos oficiais de justiça, bem como conhecer um pouco mais de suas experiências e talentos pessoais e, acima de tudo, tentar entender como esses servidores públicos enfrentaram  e ainda estão enfrentando esse longo período de isolamento social devido à pandemia da Covid-19 (eles ainda permanecem trabalhando nas ruas, mesmo no auge da pandemia).

Quando a Diretoria de Comunicação decidiu finalizar o ciclo do projeto Retrato Oficial para que um novo projeto possa acontecer, foi sugerido o nome da entrevistada dessa reportagem devido a experiência que ela viveu ao ser acometida pelo Coronavírus e porque ela havia sido a primeira cronista a escrever para a Coluna.

O que não sabíamos era que seu relato poderia ser tão forte, tão cheio de esperança, com tanto amor pela vida, mas também, realisticamente, um pouco assustador. Sem ver e ouvir a Giovanna Gomes Pereira de hoje, jamais poderíamos dimensionar o quão dolorosa foi sua experiência com esse inimigo invisível que recebe o nome de Sars-cov2.

Aperte o cinto para essa reveladora viagem!

REP – Qual seu nome completo?

ENTR – Giovanna Gomes Pereira.

REP – Você exerce o oficialato há quanto tempo?

ENTR – Dezembro de 1997, 23 anos, portanto.

REP – Em quais comarcas atuou e em qual está lotada atualmente?

ENTR – Estou na Comarca de Vila Velha desde sempre.

Poderia nos contar como foi contagiada pelo Coronavírus? Consegue lembrar as circunstâncias? Acredita que tenha sido no exercício da profissão?

ENTR – Não dá para ter certeza, porém, contabilizando-se o prazo de manifestação dos primeiros sintomas e o tempo em que o vírus permaneceu no meu organismo, chegamos a uma data em que intimei uma senhora que estava com sintomas gripais, como tosse seca, coriza, expressão de abatimento e dor de garganta. Ela estava sem máscara, questionei-a sobre a utilização da máscara e ela respondeu que havia se levantado com rapidez e por isso esquecera da máscara. Perguntei –lhe se estava com Covid-19 e ela afirmou que não.

O mandado era para intimação de sentença da extinção de punibilidade do marido dela, e ela, como vítima, deveria tomar ciência do fato e que era meu trabalho comunicá-la.  Ato continuo, ela me informou que o marido havia falecido há poucos dias. Questionei por qual motivo, ela me informou que teria sido de Alzheimer. Pedi, então a certidão de óbito para juntar ao processo. Ela trouxe, tirei foto do documento, onde constava como causa da morte Síndrome Respiratória Aguda. De qualquer forma, eu estava com todos os EPIs, inclusive com a “face shield”.  Não toquei na senhora, mantive o distanciamento, não solicitei sua assinatura, não peguei na certidão de óbito, não lhe entreguei caneta, ou seja, o contato foi simplesmente por fala, estando ela sem a máscara e havendo tossido várias vezes na minha direção. Certifiquei a intimação relatando que não pegara o seu ciente tendo em vista o receio de contaminar-me face à situação que se apresentou.

 REP – Que cuidados preventivos mantinha antes de ser contagiada?

ENTR – Todos os recomendados, higienização das mãos sempre que possível com água e sabão, álcool gel e álcool 70, os quais carregava dentro do carro e mantinha, como continuo fazendo, um frasco em cada cômodo de casa, uso de máscara com troca a cada 2 horas, uso de “face shield”, distanciamento social, saída de casa apenas para trabalhar ou adquirir algum produto indispensável, racionalização extrema dos roteiros de trabalho, tirar os sapatos antes de entrar em casa, ir direto para a área de serviço ao chegar da rua para despir-me e pôr a roupa na máquina de lavar imediatamente e em seguida tomar banho, lavar  ou higienizar com álcool 70 todo e qualquer produto adquirido, ir ao fórum o mínimo possível, não frequentar aglomerações, não ir a bares e restaurantes, aplicar álcool 70 nos sapatos que permaneciam na área externa do apartamento, higienizar as fechaduras das portas de entrada e lavar as máscaras imediatamente após retornar para casa.  Enfim, tudo isso e mais tudo o que eu considerasse necessário fazer.

REP – Como foi o tratamento que recebeu e quais foram etapas vividas nessa doença?

ENTR – Não tive muitos sintomas. Numa terça-feira, acordei de madrugada com febre alta de 39º, no dia seguinte fui ao fórum por volta das 13 horas e me achei com o corpo mole. Me mantive distante dos colegas que aguardavam a chegada de alguém na Central de Mandados. Peguei meus mandados e a caminho de casa parei para fazer o PCR-RT num laboratório próximo. Não tive mais febre, só me senti desanimada porque havia recebido uma “penca” de mandados, mas a febre da terça-feira me deixou receosa e como quis evitar ir ao hospital, liguei para minha pneumologista que me encaixou na quinta-feira para uma consulta. Estando lá, ela mediu meu nível de saturação e já me encaminhou direto para a internação no hospital conveniado ao meu plano de saúde. Passei em casa, peguei o necessário e me dirigi ao hospital. Tive que andar da entrada do estacionamento até o pronto socorro. Já entrei lá quase desmaiando, parecia que havia competido numa corrida de 800 m.

Fui socorrida rapidamente, internada e medicada. Acordei na manhã seguinte (sexta-feira) com várias pessoas me socorrendo às pressas. Me colocaram uma máscara de oxigênio na face e me levaram para a UTI do pronto socorro. Lá, me puseram numa bolha de oxigênio (uma espécie de equipamento para evitar a temida intubação). Acontece que a tal bolha fica presa por alças nas costas que quase arrancavam as minhas escápulas. Não aguentei tal dor, para mim foi insuportável. Nem os remédios para alívio das dores resolveram. A bolha rompeu-se e puseram outra que também se rasgou. E eu naquele sofrimento e com a ameaça de ser intubada. Desesperada com a dor, cheguei a dizer ao médico que se era preciso me intubar que assim o fizesse, porque não estava aguentando mais a dor. Se não morrer de Covid, morro devido à dor, pensei.

Às 19 horas houve a troca do plantão e a médica que o assumiu chegou num desses momentos de extremo sofrimento e disse aos auxiliares técnicos que tomaria as medidas que fossem mais adequadas à minha situação. Tentaram ainda uma máscara só de rosto, que também não resolveu. Recordo-me que foi nesse momento que comecei a “apagar”. De repente, chegou a equipe da UTI do hospital, dedicada ao tratamento da Covid. Só me lembro de os médicos discutirem a cessão de um respiradouro ao qual eu teria direito. Nesse momento, perdi os sentidos.  Fui levada ao coma induzido e intubada, quando recobrei a consciência, estava em coma ou meio em coma, pois, segundo as informações, que recebi depois, eu resisti demais a entrar em coma e os médicos já não sabiam mais que procedimentos adotarem.

Eu, de fato, me mantinha observando tudo o que ocorria, estava agitada, preocupada com as pessoas com as quais havia mantido contato, com a necessidade de que os médicos tomassem conhecimento da minha situação de saúde através da reumatologista e do neurologista que me acompanhavam, pois, como tenho dores na região dos quadris, andei pesquisando doenças reumatológicas e neurológicas, e embora tenham já me virado do avesso não se conseguiu nenhum diagnóstico positivo para doenças autoimunes.

Eu estava em coma induzido, mas me mantinha “acesa”. Tinha total consciência do estado grave em que estava, ouvia o que era conversado ao meu redor. Lembro de um médico ter gritado comigo dizendo que estava tentando me ajudar e que eu deveria colaborar. Impotente, eu tentava conversar com eles e avisar que no meu telefone existiam todos os exames já realizados. Sentia-me fazendo toda a força que me era possível para sobreviver, sentia o vírus me atacando e fragilizando-me. Em meu íntimo, pedia amparo espiritual para continuar viva, mas também me sentia em paz se tivesse que desencarnar.  Porém queria mais tempo de vida porque me sentia ainda com muito fôlego para viver e com coisas por fazer. Senti muita sede e fome. A dieta me fazia ter diarreia com a qual convivi por 30 dias. Não podia beber. Tinha consciência dos delírios que tive e lembro-me deles. Alguns muito mágicos e hiper coloridos, outros em sépia, numa história em ritmo de cordel encantado, uma “viagem” muito delirante e musicada, encenando uma performance de como teria sido a povoação de Vila Velha a partir do amor de dois casais conhecidos.

Mantive-me em observação enquanto isto se passava, pois queria contar tudo a um amigo próximo quando aquela fase acabasse. Tive “encontros” com minha mãe e meu pai, ambos já falecidos, que me trouxeram um irmão magoado para nos apaziguarmos, pois ele se ressentia de ter sido excluído da família num aborto espontâneo e eu havia tomado seu lugar. Após voltar do coma, uma tia me confirmou que minha mãe sofreu um aborto espontâneo antes de engravidar de mim.  Tive dois desses “encontros”. No primeiro tomei conhecimento do fato e no segundo pedi ao irmão que retomasse seu lugar no seio da família porque eu não me importava em ser ou não a primogênita, que queria apenas viver. Ele aceitou e, a partir de então, senti que comecei a melhorar.

REP – Quantos dias ficou em coma induzido e como foi sua recuperação?

ENTR – Foram 20 dias em coma. Soube, quando acordei, que havia ficado três dias com o pulmão a 0%, mas que nenhum órgão apresentava sequelas; que fui intubada, traqueostomizada, pronada e mesmo assim sem sinais de melhora.

Os médicos começaram a perder as esperanças. Chamaram minha irmã, alguns amigos e parentes para conversarem comigo na tentativa de que isso me desse forças para voltar. Ouvi o conteúdo de algumas dessas conversas. Em particular, fiquei muito preocupada com a situação emocional da minha irmã que estava prestes a me perder e há poucos meses havíamos perdido nossa mãe. Quando já estavam providenciando o que chamam de “cuidados paliativos” para dar conforto a quem está falecendo, retornei do nada.

Entrei em desespero porque havia emagrecido certamente mais de 10 kg, minhas coxas pareciam coxas de frango de tão magras, as canelas eram uns cambitos, a pele descascava dos pés à cabeça, os poros do meu rosto pareciam uma lixa.

Eu tentava me mexer e não conseguia, não tinha forças, não conseguia falar. Tinha uma dificuldade enorme para me comunicar, pois os técnicos de enfermagem, os médicos e enfermeiros nem sempre conseguiam fazer a leitura labial. Fiquei na UTI ainda por 10 dias após retornar do coma. A sede e a fome eram desesperadoras. A sede me fez ter inúmeros delírios imaginando como faria para conseguir colocar algo molhado na boca, já que não podia beber nada. Imaginava planos para que minha comadre fabricasse gelo e desse um jeito dele chegar até a mim. Passava horas e horas projetando novos planos com esse objetivo, até que pedi ao nutrólogo que mudasse a minha dieta porque não aguentava mais tanta diarreia e sede.

Pedi chup-chup, gelo, picolé, sorvete ou o que quer que me atenuasse a secura e a desidratação. Os médicos entenderam que poderia ser uma boa tática. Ligaram para minha irmã e pediram-lhe que levasse sorvete, porém um dos médicos da equipe desceu e comprou um sorvete para mim. Ouvi as técnicas comentando o gesto, pedi o “MEU” (rsrsrs) sorvete e foi uma disputa para saber quem iria me servir.  A escolhida foi uma das técnicas. Uma dentre as que eu identificava como “Mãe Preta”. Percebi, observando o funcionamento da UTI, como o racismo está embrenhado na nossa estrutura social. Quase todas as técnicas que atendiam ali eram mulheres pretas. Lindas e amorosas mulheres que se doavam a cada paciente, atendendo-os no que fosse necessário, desde limparem suas fezes, os medicarem, até pentearem seus cabelos e cortarem suas unhas. Sou muito grata por tudo que vivi e aprendi nesse período, inclusive por haver percebido com tanta clareza os papéis importantes que os afrodescendentes desempenham e como não são valorizados. Sei que tive várias “mães pretas”, mulheres que desenvolveram afeto por mim e tratavam-me com todo carinho que tinham dentro de si. Havia uma dupla que corria para mim assim que dava o horário de higienização.

Passei por momentos de desespero emocional, senti alguns sintomas de síndrome do pânico, conversei sobre isso com os médicos, pois tinha medo de desenvolver uma depressão, doença pela qual já havia passado há vários anos e que foi outra dureza.  Certo dia, um dos médicos que me atendiam passou em visita e me perguntou como eu estava, abri a boca a chorar dizendo-lhe que não aguentava mais, ele retrucou me fazendo um cafuné e me pediu para manter as forças e não desistir porque eles haviam tido muito trabalho para me manter viva, que eu tinha sido muito forte até ali e que continuasse sendo, pois havia muita gente vibrando por minha melhora, que eles haviam conseguido orientação com meus médicos de referência e que em dias eu seria transferida para o quarto se  conseguisse ficar fora do respiradouro, só no oxigênio.

Foram dias muito difíceis, de sede, fome, diarreia, falta de força, sentimentos confusos e sobretudo muita lucidez. Tanta que todos eles se espantavam. Não é comum o paciente de Covid-19  retornar do coma tão lúcido como eu estava. Em razão de não conseguir me comunicar pela fala, comecei a querer escrever e senti uma enorme vontade de desenhar. Havia levado um caderno numa pasta que seguiu comigo, embora, todas as outras coisas que havia levado para o hospital tivessem sido devolvidas a minha irmã. Eu tinha visto a pasta com o caderno junto com as minhas novas coisas no armário (fraldas, lenços de limpeza, próteses para os pés e cabeça) e pedi que me arrumassem uma caneta. A princípio os médicos não autorizaram a caneta e nem o caderno, mas um disse que quando minha irmã fosse me ver que poderiam me dar o caderno e a caneta.

Minha irmã, minha tia e meu compadre/ irmão de caminhada foram me ver. Visitas rápidas, de 10 a 15 minutos, mas eficazes. O caderno e a caneta me foram fornecidos quando minha irmã pode me ver. Com muita dificuldade, passei-lhe os dados que ela estava precisando para administrar minhas contas e dar andamento a minha vida fora do hospital. Passei também por um período em que os braços ficavam amarrados para que eu não arrancasse o respirador, um sufoco. Enchi tanto a paciência, que me deram o caderno e uma caneta. Passei a desenhar e a tentar escrever para me comunicar, no entanto, não tinha coordenação motora, tremia indescritivelmente. Então, me deram uma folha com o alfabeto para que eu mostrasse as letras e formasse as palavras que precisava pronunciar, mas eu não tinha força sequer para indicar as letras corretamente. Sentia muita raiva nesses momentos. A fisioterapia motora e a respiratória, bem como, a fonoterapia começaram logo que saí do coma, mas o que me ajudou a adquirir a coordenação motora fina foi o celular. Estou por ver algo mais potente neste sentido.

Em dez dias, a UTI mudou de lugar duas vezes e eu fui junto para os novos espaços. Comecei a interagir com os amigos, colegas e parentes através do celular e foi maravilhoso porque me ajudou a manter o sentido de pertencimento aceso. Saí do respirador e passei a receber oxigênio através de uma mangueira que se ligava a um filtro acoplado à traqueostomia. Continuava sem poder comer e beber normalmente devido ao risco de bronquioaspirar, ou seja, de algo ir parar indevidamente nos pulmões. Passava sempre pelo procedimento de aspiração da traqueostomia para limpar as secreções que não conseguia eliminar.

A despedida da UTI

ENTR – Finalmente, veio a boa notícia de que abrira uma vaga num quarto e que eu iria sair da UTI. Já estava tão acostumada e tão grata a todos que, ao mesmo tempo em que estava feliz pela progressão, sentia a perda de todo aquele carinho que me havia sido dedicado, até porque as visitas permitidas foram bem poucas. Estar sozinha, lúcida numa UTI, sem qualquer segurança a respeito do futuro, sem família, sem visitas é dureza. Por vezes, chorei com saudades de casa, da família, dos amigos, de meus pets e pedi para ver o primo mais jovem, o qual já havia passado pela Covid.  Temia que alguém fosse me visitar e se contaminasse.  Numa UTI se vê de tudo, são inúmeras as intercorrências, fica-se totalmente vulnerável, de cara a cara com a morte e também se assiste a sua chegada para outros.

Fui para o quarto, nova etapa do tratamento, novas inseguranças, novas adaptações, novos desafios. Precisava ter acompanhamento 24 horas por técnicos de enfermagem. Minha irmã providenciou uma equipe de três pessoas que acabou por se tornar de sete, tamanha a trabalheira que cada uma tinha em seu plantão. Assim que cheguei ao meu novo espaço, recebi da enfermeira chefe as boas vindas e na manhã seguinte, quando a médica passou em visita, me perguntou se eu tinha consciência de que eu estar viva era um grande milagre? Em outra oportunidade comentei com ela que estava receosa quanto ao retorno de outras funções, ao que ela me respondeu que não deveria ter receio algum. Disse, “se o seu pulmão retornou, todas as demais funções também retornarão”. Era questão de tempo, esforço e paciência.  Fui muito bem tratada por todos, com alguns lapsos devido ao acúmulo de trabalho e à falta de experiência, nunca por falta de empatia ou dedicação. As equipes são pequenas para tantos pacientes. Fiz amigos com quem filosofava ainda que fosse nos curtos espaços de tempo em que me atendiam as necessidades. Algumas pessoas passam rapidamente por nossas vidas, mas deixam marcas. No caso, marcas positivas.

A luta pela recuperação

ENTR – E a luta por estabilização continuou. Pude tomar um banho de chuveiro depois de 30 dias passados só nos lenços de asseio. Puseram-me na cadeira de banho e eu estava tão magra que sentia dores devido ao assento ser de plástico. Improvisaram uma “almofada” com um lençol retorcido posto no assento.  Foi a glória, mas antes tive que vencer o medo de ser levada até o banheiro. A mesma situação se repetiu inúmeras vezes.  Não andava, não me mexia direito, não conseguia me virar na cama, sequer conseguia apertar a campainha para chamar atendimento pois ainda não tinha força. Só urinava com uso de sonda, me alimentava por sonda gástrica. Não falava, não tinha voz, tentava emitir sons, mas só mexia os lábios. O filtro na traqueostomia demandava muita observação e aspiração porque a secreção do pulmão endurece e sobe até o filtro, entupindo-o. Chama-se a isto de “rolha” e ela pode matar um paciente em segundos porque ele não consegue mais respirar. Passei por essa situação uma vez e cheguei perto de uma segunda. Na primeira tive a sorte de minha acompanhante perceber que eu estava sufocada e colocar o hospital em polvorosa. Fui socorrida por dois fisioterapeutas que usaram um aparelho chamado ambu para retirar a “rolha”. Na segunda vez, outra acompanhante ao limpar o filtro achou uma grande quantidade de “rolhas” prestes a provocar o sufocamento.

Outro sofrimento era manter-me numa posição semi sentada para favorecer o funcionamento dos pulmões, mas era reposicionada várias vezes porque acabava escorregando na cama. Nesta fase, intensificaram-se as terapias, as fisioterapias motoras e respiratórias, assim como, a fonoterapia.  Passei a testar o uso da válvula fonatória que é colocada no lugar do filtro e permite que a fala aconteça. Um alívio ouvir a própria voz depois de tanto tempo, ainda que baixa e embargada.

Voltar a me mexer e a andar pareciam coisas impossíveis, mas força de vontade é tudo. Vencer o medo e a insegurança é a metade do caminho. Logo percebi que se não me arriscasse não sairia tão cedo daquela situação e que também era preciso enxergar e respeitar meus limites para conseguir superá-los. Comemorar cada pequena vitória nos dá asas para conquistar as próximas etapas. E assim se deu o processo de retorno. Resolvi que iria tentar usar a “comadre” ao invés de pedir para passar a sonda até porque estava com infecção urinária que poderia piorar.  O deslocamento até o banheiro era algo assustador de tão complexo, inviável então. Só se justificava para o banho. Ah! Como é bom sentir a água tocando o corpo! Fui testando me virar de uma posição para outra na cama. Apertava a campainha de SOS para ir adquirindo a força necessária para fazê-la funcionar. Apesar de as pernas estarem absolutamente dormentes e sem forças, resolvi confiar nos fisioterapeutas e nas acompanhantes e me arriscar a sentar na beira da cama; depois, a sair do banho e passar algum tempo sentada numa poltrona.

A diarreia persistia devido à dieta e ao antibiótico.  Houve dias em que só pela manhã troquei cinco fraldas. Quando consegui, durante o banho, escovar os dentes usando a escova com as minhas próprias mãos chorei de emoção.  Jamais esquecerei desta sensação, foi um marco.

Costuma-se imaginar que estar internado é estar em sossego. Engano. Meu quarto era um entra e sai de técnicos em enfermagem, cuidadores, médicos, fisioterapeutas e da fonoaudióloga, além do pessoal da limpeza e do serviço de copa. Os remédios começavam às 05h00/06h00 da matina e acabavam por volta de 22h00/23h00. Eu não tinha sossego e não descansava. Descobri que um remédio que precisava tomar em jejum e aguardar meia hora para ingerir qualquer outra coisa estava sendo ministrado em conjunto com vários outros e não fazia efeito. Tive que dar alguns “pitis” para que algumas coisas entrassem no eixo, o respeito à essa necessidade foi uma delas pela dificuldade de entendimento de uma das técnicas de que não era um querer caprichoso meu e sim um pré-requisito indispensável para que o medicamento fizesse efeito.

 Esta mesma técnica, por maior que fosse a sua boa vontade, a qual existia e era visível, me acordava por volta das 02h00/03h00 da madrugada para aferir a glicose, a pressão, a oxigenação e os batimentos cardíacos. Além disso, entrava no quarto atabalhoada, fazendo mil barulhos e despejando a bandeja de instrumentos em cima de mim. Resultado, eu acordava assustada e não conseguia mais dormir. Ainda por cima, por duas vezes conseguiu desconectar a mangueira de oxigênio e sem o perceber me deixar com a saturação no pé, correndo o risco de morte até que a minha acompanhante se desse conta.

Depois de conversar com a médica, ela me disse para quando fosse necessário “sair do salto”, que eu não hesitasse. Algumas coisas só funcionam a contento assim. Conversei com a médica e combinei que entre 22h00 e 06h00 ninguém me acordaria a menos que estivesse passando mal, pois precisava dormir ou não teria como progredir no tratamento.

Fiz os testes de deglutição e ingestão de água. Fui aprovada, estava tudo certo para começar a tomar água e ingerir alimentos e aos poucos sair da dieta enteral (líquida).

Acontece que um tal relatório que deveria ser feito e apresentado à médica para que ela autorizasse a mudança da dieta não aparecia no sistema. E eu morrendo de sede. Sede acumulada ao longo de 30 dias e mais alguns. Eu não aguentava mais aquele deserto. Comecei, por minha conta e risco, a tomar escondido água de coco, a qual sempre me socorreu nas desidratações da infância. Mandava comprar, ia tomando aos pouquinhos com muito cuidado porque não poderia deixar que fosse parar nos pulmões. Como já havia feito o teste de deglutição com iogurte, também pedi para que fosse comprado e fui aos poucos me alimentando.

A dieta enteral, por mais que eu pedisse para ser retirada, permanecia. Descobrimos que ela estava correndo 24 horas por dia, sem descanso, quando havia prescrição para ser interrompida das 22h00 até às 06h00. Este fato atrapalhava tanto o remédio que necessitava de jejum quanto provocava a diarreia contínua. Um dia, lá pelo 40º me aborreci e mandei que a acompanhante desligasse a dieta. Pedi que chamassem a enfermeira chefe e a avisei que não iria mais fazer uso daquilo. Que ficaria com fome, mas não tinha condições de continuar daquele jeito. Além do desgaste físico, da desnutrição, da desidratação, estava com a pele arrasada, começando a ter alergia à fralda e com assaduras de tanta diarreia.

Nova conversa com a médica. Finalmente, fizeram o teste com caldo e comida. A fonoaudióloga me deu parecer positivo e a médica pôde me autorizar a beber e a alimentar-me normalmente.

A diarreia cessou assim que a dieta enteral foi interrompida. Nos primeiros dias que tive a ingestão de água liberada, bebia de meia em meia hora e também urinava logo em seguida. Era um tormento usar a comadre, precisava fazer muito esforço para me colocar numa posição que o permitisse. Vieram outros desafios: defecar, começar a andar pelo quarto com o fisioterapeuta e depois só com a acompanhante. De início, pisar nos pés dos fisioterapeutas para simplesmente me virar da cama para a poltrona ou para começar a dar os primeiros passos.  Andar sozinha foi um desafio que nem sei descrever, as pernas não me obedeciam, moles, dormentes, eu me sentia como uma pata. A médica prescreveu a fisioterapia com o cicloergômetro, que é uma minibicicleta ergométrica e os quadris estouraram de dor. Não foi possível continuar.  Veio a prescrição para a abertura da janela do quarto para que eu fosse entrando em contato com o ar ambiente e não climatizado. Deu tudo certo.

Tive que testar um antibiótico ao qual sempre tinha tido alergia, mas era a única nova opção dada pelo antibiograma, já que o que estava sendo usado não estava combatendo a infecção urinária. Como uma luz no fim do túnel, veio a troca da cânula da traqueostomia por uma de menor diâmetro e de metal.  Seguiram-se outros estresses como ser informada de que teria alta, mas continuaria com o tratamento sendo atendida pelo home care do plano de saúde, ser decanulada, ter a traqueostomia suturada e logo a seguir ser informada de que não teria mais a assistência home care porque tal serviço só é fornecido a quem está com traqueostomia aberta.

Saber que não teria como ir para casa sem oxigenoterapia, resignar-me a continuar no hospital enquanto os médicos negociavam com o plano o fornecimento do home care, provando que este seria indispensável para que o leito fosse liberado.

A volta para casa

ENTR – Enfim, no 51º dia de convalescência recebi a notícia de que o plano liberara o home care incluindo a oxigenoterapia, a fisio e a fonoterapia, conforme solicitação médica, mas como dependia de oxigênio, após a alta teria que aguardar o agendamento de uma ambulância para me transportar até em casa. Fato que aconteceu no fim da manhã seguinte. Foram tantas as situações inimagináveis que, por vezes, precisei dar um freio na ansiedade através da meditação até sossegar completamente.  Desde a UTI intensifiquei esta prática.

Cheguei em casa de ambulância, algo que nunca houvera imaginado. Foi uma felicidade indescritível estar no meu lar, na minha cama, ter o carinho da minha família (os poucos que podiam estar comigo) e amigos, ser recepcionada com alegria por meus filhos de patas e asas. Os olhinhos deles brilhavam ao me verem. O felino dormiu literalmente em cima de mim durante uma semana e a cadelinha nas minhas costelas.

Uma nova etapa havia começado. Era preciso ajustar os espaços às minhas novas necessidades e dificuldades, instalar os equipamentos de oxigenoterapia, um concentrador de oxigênio elétrico e uma bala (cilindro) de 20l para alguma emergência, além de um oxímetro para aferir constantemente a oxigenação e a frequência cardíaca, que no meu caso, é muito alta. No hospital chegou a 146, e por isto, estou usando medicamento para taquicardia até hoje e ainda assim ela se mantém nas alturas, sempre em torno de 95 a 120.  É uma característica de família, apesar de não possuir, até então, qualquer doença cardíaca.

As mesmas terapias que fazia no hospital continuaram em casa, com o mesmo entra e sai de pessoas, fisioterapeuta, fonoaudióloga, médico, acompanhantes e enfermeiro para aplicar um novo antibiótico intravenoso de 8/8h. A retomada da vida aqui fora também aumentou as contas com a aquisição de vários medicamentos caros. Tenho uma cesta deles e uma tabela de horários para não me perder.  Tive dor de cabeça com o preparo da Guia de Inspeção Médica e, em virtude da pandemia, não havia perícia domiciliar. Mesmo já havendo deixado o hospital há um mês, eu dependia de oxigênio quase que continuadamente, então tive que comparecer à perícia na raça e na coragem, administrando a respiração. Foi emocionalmente complicado e fisicamente sacrificial.  Quase enfartei devido ao cansaço e à dificuldade respiratória para atravessar a rua e entrar no IPAJM. Havia tentado alugar uma bala ou um concentrador portátil de oxigênio, mas não consegui.

REP – Como está sua “nova” vida atualmente?

ENTR – Minha vida segue enfrentando os novos desafios, cada um a seu tempo e dentro dos meus limites. Um deles é o cansaço físico extremo e outro relevante é a dificuldade respiratória. Eles diminuem aos poucos com a fisioterapia, mas são bem persistentes.  A rotina da recuperação da Covid-19 é dura. Num dia você se sente ótima, no seguinte está péssima, o que pode fazer você surtar se não tiver uma boa estrutura emocional, ainda mais porque o vírus lhe afeta no todo, o que inclui o sistema neurológico.  É uma gangorra cheia de sintomas esquisitos que parece que nunca vai passar e com a qual vamos nos acostumando a lidar.

REP – Como você está se sentindo hoje física e emocionalmente?

ENTR – Apesar dos sintomas do pós-Covid, tais como, a rouquidão, a falta de força das cordas vocais, a dificuldade respiratória, o cansaço extremo nas mínimas atividades, o pigarro chato, a coriza de vez em quando, a sensibilidade às mudanças do clima, as ocasionais dores no corpo em especial no pulmão, um certo comprometimento na sensibilidade do lado esquerdo, os tremores etc., estou muito melhor do que se esperava em virtude do quadro que fiz.

 A recuperação é longa, mas a minha evolução tem se mostrado muito boa. Já havia sido avisada pelos médicos no hospital que teria que ficar de licença por seis meses aproximadamente. É o período médio para a recuperação de quadros como o que tive. Estou me adaptando ao “novo normal”.

Emocionalmente, sinto-me muito bem. Nasci de novo. Tenho agora duas datas de aniversário para comemorar. Estou mega feliz de ter conseguido superar essa fase da vida. O viver tem dessas coisas. Estou aproveitando o tempo que sobra das terapias para aprimorar meus conhecimentos nas áreas que mais gosto, o que inclui ter mais contato comigo mesma. Sou fã dos processos de autoconhecimento. Talvez se não o fosse, não teria tido estrutura psicológica e emocional para lidar com tudo isto. Estou bem ativa naquilo que é possível para o momento e continuo com a mesma empolgação de sempre para viver.

REP – Quais lições aprendeu e o que você diria para os colegas oficiais de justiça e para todas as pessoas de maneira geral?

ENTR – Nossa! Não dá nem para enumerar ou discriminar tantos aprendizados. Foram os frutos de constantes observações, análises, elaborações e ressignificações. “A aceitação gera a redenção.”

Há fatos que promovem mudanças, precisamos seguir e fazer a transição entre o que era e o que passa a ser ou a estar. Quanto tempo a transição irá durar não sei, mas o importante, para mim, o que funciona é estar aberta para aproveitar o que a vida me trouxer. Nem tudo em nós, nos outros e nos fatos da vida é luz e alegria, há sombras também. E isso é natural, faz parte do todo e está tudo bem.

Vale aproveitar o caminho enquanto estamos aqui porque não sabemos a hora da partida e, mesmo que não nos pareça, há muito nos sendo ofertado, mesmo no meio do caos. É preciso ter o que chamo de “bons olhos” para encarar o processo que é o viver.  Olhar crítico, avaliativo sim, mas também contemplativo para perceber e sentir o belo que há em toda essa viagem. Será que haverá um depois? Eu acredito que sim, mas não há garantias, portanto, “é preciso saber viver”! “Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz! ” A hora é sempre o agora, ele é o presente, nos dois sentidos da palavra. Creio que foi com este foco do agora que ultrapassei toda essa avalanche que a Covid me trouxe. Apesar de tudo, só tenho a agradecer pela experiência. Deixo a rabugice de lado e fico com o que me fez crescer enquanto ser humano. No mínimo, saio desta havendo me permitido vivenciar a vulnerabilidade e a solicitude. Me sinto muito mais madura.

Para os colegas oficiais de justiça, deixo, antes de tudo, a minha gratidão por tantas boas vibrações, orações e carinho. Foi muito bom perceber, sentir e receber tudo isso. O conjunto de tanta energia positiva que me chegava por todos os lados me fortaleceu de forma impressionante para que atravessasse o “funil” desses tempos.  Alguns colegas me surpreenderam com a sua disponibilidade e atenção. Deixo aqui a eles um agradecimento especial.  Na verdade, agradeço a todas as pessoas que, assim como os colegas oficiais, me enviaram as suas emanações de carinho e afeto em orações e vibrações. Acho, pelo que observei, que recebi preces das mais diversas crenças, o que me deixa muito feliz, pois a “Fonte” é uma só, porém, a diversidade é necessária para o nosso aprimoramento por nos mostrar percepções diferenciadas que se complementam.

Sempre vale frisar o quanto este vírus é impactante e a importância de cuidarmos de nós mesmos e de quem amamos, além, é claro, de sermos solidários, empáticos e fraternos com os que estão a nossa volta e os que não conhecemos. Não digo isto repetindo um bordão de autoajuda ou religião.  Digo, sobretudo, porque percebo tais atitudes como uma exigência da natureza para a espécie humana.

Com relação ao desempenho da nossa atividade como oficiais de justiça, procuremos nos preservar ao máximo, tomando todos os cuidados necessários e, atenção para o detalhe, nem sempre eles são suficientes. Como estamos vivendo novos tempos, precisamos nos adaptar e descobrir o equilíbrio entre a necessária prestação jurisdicional e a manutenção da vida e do bem-estar nosso e do coletivo. Lembremo-nos que, a qualquer hora, podemos nos tornar vetores de disseminação do SARS-COV-2. Para alguns somos apenas números, mas para quem amamos e para os que nos amam a nossa vida vale muito. Saibamos valorizá-la também.

Reprodução: SINDIOFICIAIS-ES