Geral

Operação Jus Postulandi

segunda-feira, 05/09/2011 15:27

Desembargador envolvido em esquema de habeas corpus investigado pela Polícia Federal

O esquema de venda de sentenças investigado pela Polícia Federal (PF) e que tem entre os principais suspeitos o desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Hélcio Valentim pode ser bem mais amplo. É o que aponta o relatório sigiloso de análise e inteligência da PF que deu origem à Operação Jus Postulandi, deflagrada no final de junho depois da prisão do desembargador, do empresário Tancredo Tolentino, acusado de intermediar as negociações, e do advogado e vereador em Oliveira (Centro-Oeste mineiro) Walquir Avelar (PTB), acusado de negociar sentenças para traficantes.

De acordo com o relatório, o advogado e vereador tinha também contatos na Polícia Militar, que repassavam a ele informações sobre traficantes presos na região, e contratava os serviços de outros colegas para apresentar na Justiça os pedidos de habeas corpus. Além das negociações comandadas por Avelar, que levaram à soltura de pelo menos quatro traficantes – um deles detido com cerca de meia tonelada de drogas –, a PF levanta suspeita sobre outros habeas corpus concedidos pelo desembargador durante seus plantões criminais no TJMG para advogados de outras bancas.

No mesmo domingo de maio em que determinou a soltura de Leandro Zarur de Maia, um traficante do Mato Grosso preso em Bom Despacho, também no Centro-Oeste de Minas, o desembargador libertou Delaine Cristina, condenada a 14 anos por tráfico e que estava presa em Belo Horizonte desde agosto de 2010. A soltura de Leandro foi negociada por Avelar por R$ 96 mil, conforme revelam as escutas telefônicas e as interceptações de e-mails trocados entre ele e uma mulher identificada como Jaqueline Jerônimo. De acordo com a PF, ela era a responsável por discutir os detalhes da soltura não só de Leandro mas também de outros dois presos que teriam sido soltos por intermediação de Walquir.

A soltura de Delaine foi feita pelo advogado de Betim (Região Metropolitana de Belo Horizonte) Jayme Guimarães Filho. Cinco dias depois de soltar Leandro e Delaine, durante um plantão noturno de sexta-feira, o desembargador libertou também João Carlos Gonçalves, que responde a processo por tráfico de drogas na capital mineira. O pedido de libertação partiu mais uma vez de Jayme Guimarães Filho. A soltura de João Carlos foi tão duvidosa, afirma a PF, que o próprio TJMG cassou a liminar concedida por Valentim logo no dia seguinte, antes mesmo da expedição do alvará de soltura. No caso de Delaine, o habeas corpus também foi cassado, mas ela já tinha sido solta e continua foragida até hoje.

Outro caso suspeito envolvendo o desembargador diz respeito à soltura, também em maio, no plantão de sexta-feira, da advogada Eliane dos Santos Souza, de 47 anos, mais conhecida como “Rainha do Pó”, chefe de uma quadrilha de traficantes. Condenada a 16 anos em Manhuaçu, Zona da Mata, ela foi presa mais de uma vez por tráfico e por manter um laboratório de refino e preparo da droga em seu escritório.

A concessão do alvará de Leandro, impetrada pelo advogado Endrigo Otávio da Silveira, foi dada em tempo recorde. O pedido de habeas corpus foi registrado no final da manhã de domingo, por volta das 11h. Antes das 17h, Avelar já havia ligado para o escrivão de Bom Despacho, onde Leandro estava preso, para pedir a expedição do alvará de soltura. “Como o desembargador Hélcio conseguiu analisar e decidir no mesmo dia e com tanta agilidade os dois habeas corpus protocolados em pleno domingo? No caso do habeas corpus de Leandro, a petição continha mais de 200 páginas de documentos”, questiona o relatório da PF.

O documento também levanta outras perguntas a respeito da concessão dessas liminares: por que Hélcio Valentim não remeteu a decisão ao relator competente e concedeu a liminar no plantão, já que os traficantes soltos por ele estavam presos há muitos dias, portanto não era caso de urgência? “Como o advogado Walquir Alencar ficou sabendo que o desembargador responderia pelos habeas corpus protocolados no domingo dia 15, uma vez que pela internet essa informação não está disponível? “ é outra pergunta feita pela PF no relatório sobre o caso.

Plantões – A resposta para a questão está no depoimento de Jussara Dias Teixeira, oficial do TJMG, designada para o plantão do fim de semana em que o desembargador concedeu as liminares para Leandro e Delaine. Segundo ela, os desembargadores têm um acordo para dividir os processos que chegam durante os plantões de fim de semana. No plantão da soltura dos dois traficantes, o acordo era para que todos os procedimentos que chegassem no domingo fossem direcionados para Hélcio Valentim, e os de sábado para o desembargador Judimar Biber. Procurados pela reportagem, os advogados Endrigo Otávio e Jayme Guimarães não retornaram o pedido de entrevista deixado em seus escritório em Raul Soares (Zona da Mata) e Betim. Walquir Avelar também não foi localizado para comentar o relatório da PF.

Flagrantes anunciados

Além do contato com pessoas influentes, como o empresário de Claúdio (Centro-Oeste) Tancredo Tolentino e o próprio desembargador, o advogado e vereador Walquir Avelar (PTB) também tinha relações com policiais civis e militares, aponta o relatório da Polícia Federal sobre a Operação Jus Postulandi. Segundo a PF, o advogado, acusado de negociar com os traficantes a compra de liminares, era comunicado por policiais sobre traficantes presos na região. “Existem vários registros de áudios em que policiais civis e militares passam informações (para Avelar) privilegiadas acerca, por exemplo, de flagrantes que ainda estavam sendo feitos na delegacia local”. Em um dos áudios, o vereador avisa um de seus clientes de que suas entregas de droga estavam sendo monitoradas pela Polícia Militar. Na conversa, ele alega que essas informações estariam sendo repassadas pela PF para a Polícia Militar de Oliveira.

Em outro áudio, Avelar tenta convencer um policial da P2 (sigla usada para definir os agentes secretos da corporação) a extorquir dois traficantes que estavam com ele em seu escritório. Segundo o relatório, no dia 11 de janeiro o advogado recebeu uma ligação de um policial militar identificado no relatório apenas pelo primeiro nome. Na conversa, Walquir Avelar diz ao policial para não aparecer em seu escritório, mas pede que ele passe na porta para pegar a placa do carro dos supostos traficantes que estariam fazendo um acerto de contas no local. O policial, ao ser informado sobre o nome de um dos homens, desiste de passar, pois é conhecido de um deles, apelidado de Neném Papelão. Minutos depois, segundo a PF, o vereador manda uma mensagem para o PM. “Cara, o Neném tá pagando ele na minha frente, nunca vi tanto dinheiro. Se der um pulão ele não explica o dinheiro? Tem como pegar para nós”, diz o texto enviado pelo vereador para o policial.

De acordo com a PF, a extorsão não aconteceu, pois o PM preferiu comunicar o fato à Polícia Federal, que confirmou no relatório o recebimento dessa ocorrência. A Secretaria de Defesa Social disse que as informações sobre a abertura de procedimento para apurar o possível envolvimento de policiais nas fraudes investigadas pela PF só poderiam ser repassadas pela corregedoria da PM e da Polícia Civil. A Polícia Civil disse que não poderia se manifestar sobre investigações a cargo da PF.

O vereador negou relações com policiais civis e militares. “Desconheço e não é verdadeira a denúncia da PF de que eu tivesse informações privilegiadas da PM e Polícia Civil sobre pessoas presas por tráfico na região. Eu tinha informações específicas sobre meus clientes que me constituíram e com os quais eu tinha dever profissional de defesa”, alegou Avelar, por e-mail. Sobre a operação ele disse não ter “nada ainda a declarar”. A PM não quis se pronunciar sobre as informações do relatório da PF.

Empresário confessou propina

O empresário de Claúdio, no Centro-Oeste mineiro, Tancredo Tolentino, 52 anos, conhecido como Quedo, confessou em depoimento à Polícia Federal ter repassado recursos para o desembargador Hélcio Valentim, acusado de envolvimento em um esquema de venda de sentença para a libertação de traficantes. Em depoimento ao delegado federal Antônio Benício de Castro Cabral, no dia da Operação Jus Postulandi, Quedo disse ter recebido do advogado e vereador Walquir Avelar um envelope de papel pardo com R$ 45 mil. Ele disse que entregou R$ 40 mil ao desembargador em uma fazenda em Carmo da Mata, pouco antes da concessão do habeas corpus que liberou os traficantes do Mato Grosso presos em Minas Gerais Braz Correa de Souza e Jesus Jerônimo Silva. O restante do dinheiro – R$ 5 mil – foi a parte dela na negociação.

Quedo, amigo de Walquir há cerca de 10 anos e do desembargador há quatro, afirma que foi procurado pelo advogado para interceder a favor da libertação dos traficantes por causa de uma palestra dada por Valentim no Triângulo Mineiro. Segundo o depoimento de Quedo, nessa palestra o desembargador teria dito que em casos de processo penal ele não admite excesso de prazo. Em todos os habeas corpus concedidos por ele e investigados pela PF, contudo, Valentim alegou que os presos estavam detidos além do prazo permitido pela legislação sem julgamento da causa. Ele informou à PF ter intercedido junto a Valentim a favor dos clientes de Walquir “quatro ou cinco vezes no decorrer deste ano”. Ele também revelou que uma negociação para a libertação de dois traficantes – os irmãos Thiago e Ricardo Bucalon – não prosperou, pois os dois não teriam obtido o dinheiro para pagar pela sentença.

“O interrogado (Quedo) confirma que pediu vários favores ao desembargador Valentim e que ao obter sucesso lhe dava certa quantia em dinheiro apenas como forma de agradecimento’, diz um trecho do depoimento de Quedo. Durante o depoimento, ele confessou ter repetido o mesmo esquema usado para libertar os traficantes Braz Correa de Souza e Jesus Jerônimo Silva, para beneficiar  Leandro Zarur Maia: teria dado R$ 40 mil ao desembargador, dinheiro repassado a ele por Walquir (Quedo  ficou com R$ 5 mil). Ele contou que repassava ao desembargador cópia dos processos e pedia instruções sobre como redigir os pedidos de soltura, dados que eram entregues a Walquir. 

Fonte: Jornal Estado de Minas